Quase um
ano após a histórica paralisação nacional dos caminhoneiros, ficou claro que o
tabelamento do frete não foi uma solução vantajosa nem mesmo para os próprios
motoristas que o reivindicaram. Segundo especialistas em logística, a imposição
de preços mínimos encareceu o transporte rodoviário em vários trechos do país,
favorecendo alternativas que se tornaram mais baratas —ainda que de forma
artificial.
Pesou também o fator psicológico.
Traumatizados com a total suspensão no transporte de cargas durante a paralisação,
por causa da alta dependência de caminhões, executivos da área de logística de
empresas dos mais diversos setores passaram a olhar com mais carinho para
outras opções.
Nessa busca por alternativas mais
baratas e seguras, um dos transportes mais beneficiados é a navegação costeira
entre os portos nacionais, a chamada cabotagem. Na média, houve crescimento de
17,5% no volume transportado por cabotagem em todo o país desde o fim da
paralisação até fevereiro deste ano, segundo levantamento do Ilos (Instituto de
Logística e Supply Chain). Em alguns pontos, como trajetos no sentido
Nordeste-Sudeste, a alta passa de 20%.
"Depois da paralisação dos
caminhoneiros, o modal aquaviário passou a ser muito mais utilizado, e isso não
tem volta", afirma Adalberto Tokarski, diretor-geral da Antaq (Agência
Nacional de Transportes Aquaviários). As empresas que atuam no litoral
brasileiro confirmam a nova tendência no dia a dia do seu trabalho.
Marcus Voloch, diretor para o
Mercosul da Aliança Navegação e Logística, empresa especializada no transporte
costeiro de cargas, diz que a demanda cresceu 16% após a paralisação no ano
passado —192 dos 1.400 clientes foram conquistados nesse período. "A
cabotagem não era competitiva em muitos trechos, como Bahia-São Paulo ou
Ceará-Bahia, mas a adoção de um valor mínimo para o transporte em caminhões
mudou isso, e a demanda para o transporte de mercadorias nessas áreas veio com
muita força", afirma Voloch. No caso do trecho Bahia-São Paulo, o aumento
foi superior a 300%, afirma. Entre o Ceará e a Bahia, o volume mais que
duplicou.
Um dos fatores que pesaram em favor
da cabotagem foi o fato de a tabela do frete interferir na dinâmica natural do
mercado de transporte das cargas rodoviárias. Sem intervenção, as empresas se
guiam pela lei da oferta e da procura. Nas rodovias brasileiras, é comum
haver mais oferta de carga na chamada subida — ou seja, no sentido Sul-Sudeste,
Sudeste-Nordeste, por exemplo. Na descida, não raro, o caminhoneiro não tem
carga ou tem um volume muito menor para transportar, o que o obriga a reduzir o
preço do frete.
Com a tabela, a lei da oferta e da
procura foi revogada, o preço se tornou fixo e inegociável. "Nas rotas de
descida, o preço aumentou muito no transporte rodoviário, porque antes se tinha
um negócio com pouca demanda e muita oferta de veículos —o que significa que o
preço caía. A tabela estabeleceu um preço único, tanto para subida quando para
descida", disse Maria Fernanda Hijjar, sócia-executiva do Ilos.
Segundo dados do Ilos, de junho de
2018 a fevereiro de 2019, o crescimento da cabotagem na subida foi de 14,8% e
de 21,3% na descida. Hijjar conta que as cargas mais comuns na subida são
cereais, com destaque para o arroz e o trigo. Já na descida se destacam sal,
gesso, cal e cimento. Segundo ela, o crescimento da cabotagem após a
paralisação foi multissetorial.
A indústria cearense de eletroportáteis
Mallory, por exemplo, colocou 30% de suas mercadorias no transporte via
cabotagem depois da criação do frete mínimo. "Com o preço da tabela, o
valor da rota Nordeste para Sudeste encarece mais de 180%", disse o
diretor de operações da companhia, Alan Costa. "Da porta da minha fábrica,
em Maranguape, até a rodoviária de São Paulo, nós pagamos por caminhão cerca de
R$ 7.000. Com a tabela do frete, o valor foi para R$ 18 mil", explica
Costa.
Na avaliação do executivo, a
imposição de uma tabela com preço mínimos distorceu as condições da logística,
pois o transporte rodoviário em condições normais é mais vantajoso mesmo quando
o preço fica 15% maior que a cabotagem. Também é mais fácil lidar com a
documentação no translado rodoviário quando se compara à burocracia nos portos
que, segundo Costa, costuma retardar as entregas.
"Para ir a Santos, eu desço de
caminhão em no máximo em três dias. Já a burocracia dos portos é muito superior
a isso. Só de portos, tanto no aqui no Ceará quanto lá São Paulo, são de quatro
a sete dias. E também depende das agendas dos navios, que não têm partidas
diárias."
O estabelecimento de um piso aos
caminhoneiros surgiu como parte de uma negociação do governo de Michel Temer em
meio à crise no ano passado. A medida provisória determinava que a ANTT
(Agência Nacional de Transportes Terrestres) tabelaria os preços do frete para
garantir à categoria uma renda mínima.
Temer sancionou a lei do tabelamento,
mas a constitucionalidade da questão ainda deve ser debatida no STF (Supremo
Tribunal Federal). Isso porque, logo após a criação da tabela, associações do
agronegócio, que foram afetadas imediatamente com o aumento do frete, passaram
a questionar a intervenção do Estado na economia.
Para o economista-chefe da MB
Associados, Sergio Vale, respostas a eventos grandes e inéditos costumam não
ser as melhores, devido à pressa em estancá-los. No governo Temer, não foi
diferente. "Temer estava num momento muito frágil, com a popularidade
baixa, e tinha toda a questão de uma nova votação na Câmara contra ele. Então
os caminhoneiros aproveitaram esse momento, e a resposta foi inadequada",
disse.
"É muito ruim fazer uma coisa
generalizada, sem considerar especificidades de cada segmento e cada região do
país, colocando valores únicos muito precários. Quando isso acontece, o mercado
dá soluções possíveis", acrescenta.
Segundo Vale, é preciso levar em
consideração que a tabela desarranjou o mercado, encarece e atrasa o processo
produtivo. Para ele, enquanto o STF não decide a constitucionalidade dela, as
empresas ficam em um limbo, assumindo custos de mais uma jabuticaba na
economia. A fruta é usada como analogia para medidas que não existem em outros
lugares do mundo. "O certo seria deixar essa tabela de lado, assumir que
ela é inconstitucional, mas o Supremo não quer dar essa palavra. Enquanto isso,ficamos
num impasse que acumula custos para as empresas."
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