sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Retrocessos podem fazer Brasil sofrer com barreiras não tarifárias

         O Brasil ensaia entrar no túnel do tempo e voltar a sofrer com as chamadas barreiras não tarifárias, de ordem ambiental e social, difíceis de serem contestadas. No passado, elas foram usadas por concorrentes internacionais como argumento para minar as exportações brasileiras, diz o embaixador Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente.
         Diante da portaria que afrouxa a definição de trabalho escravo e altera critérios de autuação e de divulgação desse tipo de crime, acordos de comércio podem ser colocados à prova pelo que o embaixador chama de "retrocessos" chancelados pelo governo de Michel Temer.
         O recuo é generalizado, diz ele. Ocorre nas condições de trabalho no campo, nas questões ambientais e também em relação às demarcações de terras indígenas e quilombolas, causando assombro e reações dentro e fora do país.
         Até terça (17), apenas no Congresso Nacional, haviam sido protocolados oito projetos pedindo a revogação da portaria que altera a definição do trabalho escravo. "É um retrocesso completo, o governo dá um tiro no pé. Um não, reiterados. Ele não se cansa", afirma.
         Ricupero diz que o país estaria voltando ao início dos anos 1990, quando setores nos quais o Brasil gozava de vantagens comparativas importantes enfrentavam questionamentos no mercado externo envolvendo trabalho infantil ou realizado em circunstâncias degradantes.
         As justificativas dos concorrentes era de que o país conseguia oferecer condições competitivas no comércio externo passando por cima de requisitos considerados mínimos no âmbito dos direitos humanos e ambientais.
         Os recentes recuos, portanto, dariam gás à estratégia. Foi na década de 1990 que o país começou a olhar para o problema. Uma lei de 2003, no entanto, atualizou a tipificação do crime, introduziu as expressões "condições degradantes" e "jornada exaustiva" e estabeleceu penas de reclusão, de dois a oito anos.
         A mudança abrupta de rota, fala Ricupero, é patrocinada pelos setores mais retrógrados do agronegócio, que, após idas e vindas, avançam com suas pautas de olho em vantagens no curto prazo.
Para Ricupero, é possível que pressões façam o governo voltar atrás, como já ocorreu com o Renca, a Reserva Nacional de Cobre que Temer propôs abrir à exploração por decreto, sem discussões no Congresso.
         O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também se posicionou contra a mudança. Disse que a considera inaceitável e que espera que o governo corrija o retrocesso. Nesta quarta-feira (18), a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recebeu o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, formalizando o pedido de revogação da portaria. Dodge classificou a medida como "um retrocesso na garantia constitucional de proteção à dignidade humana".
         O tema é sensível e alguns setores o tratam com discrição. Para a Unica (União da Indústria da Cana-de-Açúcar) é cedo para avaliar os efeitos. A entidade ressalta que o etanol destinado à União Europeia tem que, necessariamente, ser certificado por um selo internacional, que garanta padrão de sustentabilidade socioambiental.
         A Associação Brasileira de Varejo Têxtil, que tem programa de certificação contra o trabalho escravo, diz apenas que o mantém para fornecedores do varejo de moda. Entre os analistas de mercado, a percepção é que os efeitos negativos podem ser minimizados pela força do Brasil na exportação de produtos como soja, açúcar, café, suco de laranja e carne.
         Para José Carlos Hausknecht, sócio-diretor da consultoria MB Agro, os riscos de retaliação viriam da União Europeia, grande compradora de café e suco de laranja. Tomar esse tipo de medida não seria trivial. "Até porque a incidência [do trabalho escravo] é mínima e concentrada em lugares mais remotos".
         Outro ponto, diz Hausknecht, é que a China importa 70% da soja brasileira e divide com o Oriente Médio as aquisições de açúcar. "E acho que a China não vai deixar de comprar do Brasil".
O advogado Clovis Queiroz vê como positiva que a definição de trabalho análogo à escravidão, antes técnica, posa ficar com o Judiciário. "Às vezes, a empresa nem recebeu a infração e já tem o nome atrelado à prática sem chance de se defender",diz.
         É necessário ter determinação expressa do ministro do Trabalho, cargo ocupado hoje por Ronaldo Nogueira (PTB), para divulgar o nome de uma empresa que manteve trabalhadores em situação análoga à escravidão. Antes, a divulgação cabia à área técnica do ministério
         A portaria prevê que a lista será divulgada duas vezes por ano, nos últimos dias úteis de junho e novembro, no site do Ministério do Trabalho. Antes, ela podia ser divulgada em qualquer momento, desde que não ultrapassasse um período de seis meses sem atualização
         O auditor fiscal agora precisará ser acompanhado nas operações por uma autoridade policial, que registrará um boletim de ocorrência. Fotos da fiscalização e identificação dos envolvidos passam a ser obrigatórias no relatório da ação
         Para que o trabalho seja considerado análogo à escravidão, é preciso que haja privação da liberdade de ir e vir, segundo a portaria. Antes, usava-se o entendimento do artigo 149 do Código Penal, que considera crime a submissão do indivíduo ao trabalho forçado, a uma jornada exaustiva e a condições degradantes, podendo haver ou não restrição da locomoção

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