Uma densa
cortina de nevoeiro, na primavera de 2018, fez engasgar as operações logísticas
do porto de Shanghai, forçando a Autoridade de Segurança Marítima a restringir
o tráfego de navios de carga, causando atrasos em massa. O congestionamento provocou
um efeito dominó na cadeia logística, alastrando-se por quase todos os grandes
portos chineses, e as dificuldades arrastaram-se durante meses. Foram afetados
‘hubs’ desde Bangcoc até Kolkata, custando tempo e dinheiro a empresas em todos
os níveis da cadeia de fornecimento.
Este tipo de problema meteorológico é
inevitável e, até agora, nenhuma plataforma tecnológica conseguiu resolver as
temporadas de nevoeiro intenso que se abatem sobre os portos asiáticos. Mas a
indústria de transporte de mercadorias pode se beneficiar da digitalização para
mitigar os problemas que advêm desses atrasos. É isso que defendem a IBM e a
Maersk, duas gigantes que se juntaram para criarem a primeira plataforma de
blockchain dedicada ao transporte de contentores, a TradeLens.
“O objetivo final é digitalizar a
cadeia de fornecimento global”, disse o diretor da TradeLens na IBM, Marvin
Erdly. “Muitas outras indústrias passaram por iniciativas de digitalização e empresas
individuais, como transportadoras, também fizeram isso. Mas não houve um
empurrão para digitalizar a cadeia de fornecimento de uma ponta a outra, por
muitas razões”, explicou. “Estamos tentando fazê-lo usando blockchain,” disse.
A tecnologia, que ficou conhecida por
ser a base da criptomoeda Bitcoin, tem características que a tornam especialmente
atrativa para o setor de transporte de mercadorias. O blockchain permite criar
um registro descentralizado e imutável, em que os intervenientes têm a certeza
de que os dados que vão sendo introduzidos nunca foram corrompidos nem poderão
ser eliminados no futuro. A plataforma serve, portanto, para seguir o rastro
das mercadorias, saber onde estão a cada momento e eliminar redundância na
documentação. As informações são trocadas de forma previsível e segura,
imprimindo maior eficácia a um segmento com muitas variáveis.
“Se perguntar a qualquer empresa que
gere uma cadeia de fornecimento complexa, este é um grande problema: a
incapacidade de ter visibilidade apropriada sobre o estado de uma remessa de
mercadorias pode ter um enorme impacto na cadeia logística”, observou Marvin
Erdly. Um bom exemplo disso é uma montadora de
carros que envia componentes de todo o mundo para uma fábrica no México
e depois exporta automóveis para os Estados Unidos. Se alguns contêineres forem
barrados na Holanda porque a papelada não estava em ordem, esses componentes
não vão estar disponíveis, o que obrigará a construtora a ter excesso de
inventário. E isso custa dinheiro.
“Há um tremendo benefício em
aumentar a visibilidade e ter conhecimento de problemas em tempo real assim que
eles acontecem”, sublinha Erdly. “Há ângulos mortos em todos os pontos da
cadeia logística e muitas vezes as pessoas que estão a fazer as expedições de
mercadorias não têm visibilidade de problemas que ocorrem até muito depois de
estes acontecerem, o que faz com que não os possam endereçar.”
Há dois anos que a IBM e a Maersk
estão a trabalhar nesta joint-venture com a ambição de “revolucionar o
comércio global”, tendo anunciado formalmente a solução em janeiro de 2018.
Baseada na versão de blockchain Hyperledger Fabric, a TradeLens é uma
plataforma suportada por standards abertos. Isso reflete a ambição das
criadoras, visto que permite que sejam aceites dados de qualquer
transportadora, membro ou não da plataforma, e que as conexões técnicas sejam
muito fáceis de fazer, através de interfaces aplicacionais abertas e gratuitas.
O intuito é construir um enorme ecossistema global. Na fase beta, entraram ou
estão para entrar mais de uma centena de empresas e entidades, naquele que pode
ser considerado um projeto piloto em massa.
“Este nível de apoio demonstra o apetite que existe por nova tecnologia
que possa endereçar os impedimentos técnicos e estruturais que têm sido um
obstáculo de longa duração para o comércio global”, considera a IBM. O número
de transações ativas já ultrapassa os 300 milhões.
Entre os participantes que aderiram à
TradeLens estão 40 portos e terminais em várias partes do mundo: desde o porto
espanhol de Bilbao aos de Roterdão e Halifax, a PSA Singapore, a Modern
Terminals em Hong Kong, a International Container Terminal Services, a Patrick
Terminals, a PortConnect, PortBase e os operadores Holt Logistics no Porto de
Filadélfia. Segundo as contas da IBM e da Maersk, 234 pontos de entrada
marítima estão ou irão estar brevemente na plataforma.
“O ecossistema é composto pela rede,
as empresas ou entidades que fornecem e consultam dados, do tipo transportadoras
marítimas, portos e terminais, autoridades alfandegárias, caminhões”, indica
Erdly. Para estes players, a premissa é que se entrarem na rede e
fornecerem dados também terão acesso a informações de ponta a ponta. “É um
ciclo virtuoso, quanto mais entidades entrarem, mais dados estão disponíveis
para toda a gente”, sublinha.
A lista conta com oito autoridades
alfandegárias, incluindo Holanda, Arábia Saudita, Roterdão, Austrália, Peru e
Singapura, três transportadoras terrestres e quatro marítimas. Os
transportadores de contentores Pacific International Lines (PIL) e Hamburg Süd
também entraram e há ainda que contabilizar a Agility, CEVA Logistics, DAMCO,
Kotahi, PLH Trucking Company, Ancotrans e WorldWide Alliance.
Do outro lado da cadeia logística,
aderiram várias grandes empresas que expedem mercadorias: são os casos da Dow
Chemical, DuPont, Tetra Pak, Torre Blanca / Camposol e Umit Bisiklet. Estas
são, segundo Marvin Erdly, “as principais beneficiárias da informação” – as
empresas que fazem o envio de mercadorias, como retalhistas, construtoras
automóveis, manufatura, serviços financeiros. É aqui que assenta o modelo de
negócio da IBM: as empresas que enviam mercadorias vão pagar uma assinatura
para acederem à TradeLens. Essa subscrição será “adequada ao número de
contentores cuja informação entra na plataforma”.
Uma das dificuldades que existem em qualquer
solução que pretende ser disruptiva é demonstrar o retorno do investimento
quando a plataforma ainda está no início. Mas a IBM e a Maersk garantem
que tal não será difícil com o blockchain na indústria de transporte de
mercadorias. “Há poupanças de custo significativas”, afirma Marvin Erdly,
falando de vantagens económicas para as transportadoras marítimas “só por reduzirem
os volumes de chamadas de apoio ao cliente”.
O responsável de comunicação da
Maersk, Mikkel Elbek Linnet, aponta para os resultados obtidos durante os
primeiros doze meses de testes: num dos casos, o tempo de trânsito de uma
remessa de materiais de construção para os Estados Unidos foi reduzido em 40%,
evitando “milhares de dólares” em custos. O foco dos testes esteve na redução
de atrasos através da prevenção de erros de documentação e de outros
“impedimentos.”
“Estas empresas despendem muito tempo
e esforço com uma única e simples pergunta: onde está o meu contentor?”,
sublinha Marvin Erdly. “Acredite-se ou não, essa é uma pergunta difícil de
responder.” Isto não apenas para quem envia os produtos (como retalhistas ou
fabricantes,) mas também para as transportadoras, que têm de ter “imensos
recursos humanos só para responder a essa pergunta.” Nos testes, alguns
operadores logísticos descobriram que conseguiam reduzir a resposta a esta
questão de dez passos e cinco pessoas para um passo e uma pessoa, usando a
TradeLens.
Alguns críticos, como o ex-diretor de
logística internacional da cadeia de mobiliário Bob’s Discount Furniture, que
escreveu numa publicação de LinkedIn, revelaram ceticismo quanto à
possibilidade de uma plataforma documental poder reduzir substancialmente o
tempo que uma encomenda leva a chegar ao destino. Marvin Erdly clarifica: “Se
pensar na quantidade de tempo que um contentor permanece num camião para ser
transportado de A a B, ou num navio para viajar entre dois portos, certo, a
digitalização não vai mudar isso fisicamente. Mas há muitos outros problemas.”
A redução do tempo de trânsito
está relacionada com a resolução ou prevenção de problemas. É quando ocorrem
imprevistos que os custos começam a acumular-se. “A maioria dos players
na cadeia logística têm estas questões de visibilidade e não descobrem os problemas
até ser tarde demais.”
Outro ponto é o tempo que demora e o
esforço que requer fazer a papelada manualmente. Poder reduzir o tempo para
minutos ou segundos, porque os dados estão disponíveis para todos os envolvidos
de uma forma segura, deverá acelerar todo o processo, diz Erdly. “Há uma
proposta de valor enorme em torno disso”, garante, referindo o “tempo, esforço
e trabalho manual” envolvidos em preparar a documentação requerida para
exportar e importar bens. “A capacidade de digitalizar isso e lançar workflows
automatizados por toda a organização e entidades que precisam de partilhar
informação gera imensas poupanças de dinheiro.”
Segundo o responsável da TradeLens, o blockchain é
uma parte importante disto e tem um papel crítico, “mas a plataforma não é só
blockchain.” A ambição da IBM e da Maersk é digitalizar a indústria, não apenas
lançar uma nova tecnologia em cima de uma parte dela. O blockchain é o elemento
que permite que o ecossistema se junte e partilhe dados de forma segura, pelo
que sem ele tal não seria possível. “Usamos o termo imutabilidade”, explica
Erdly. O blockchain permite “garantir que os dados que estão na plataforma são
imutáveis e as pessoas que estão a olhar para eles sabem que não foram
alterados.” Há também um aspeto de segurança, porque a forma como é apresentada
a solução permite que os dados não estejam centralizados numa base de dados.
“Os dados estão descentralizados por toda a rede, através de nós de
blockchain.”
As empresas e entidades que
participam na TradeLens fazem-no através de um sistema de permissões, o que
garante uma camada de confiança que antes não existia. “O motivo pelo qual o
blockchain é crítico é que antes do seu uso não havia forma de estas diferentes
entidades espalhadas por todo o mundo poderem trabalhar juntas com confiança e
terem a certeza de que os dados que estão a usar são autênticos”, explica
Erdly. O responsável diz que esta tecnologia é “o molho secreto que torna isso
possível.”
Prova de que existe interesse na utilização de
blockchain para modernizar a logística global é que já existem outras
plataformas e consórcios rivais da TradeLens a tentarem conquistar território. Pouco
depois de iniciados os pilotos da IBM e Maersk, foi anunciado o sucesso dos testes
da solução de blockchain desenvolvida pela Accenture para “revolucionar os
transportes de carga marítimos.” O consórcio é formado pela Accenture, AB
InBev, APL e Kuehne + Nagel, e o primeiro teste foi feito com uma “organização
alfandegária” na Europa.
O piloto focou-se na eliminação da
necessidade de imprimir documentos de expedição, o que tem potencial para
poupar “centenas de milhões de dólares” anualmente em toda a indústria. No caso
do segmento automóvel, por exemplo, são necessários mais de 20 documentos
diferentes para passar a mercadoria do exportador para o importador, com uma
taxa de duplicação de informação que por vezes atinge os 70%.
Outra tecnológica a investir
neste segmento é a Oracle. A sua solução empresarial de blockchain está a ser
usada pelo consórcio “Global Shipping Business Network”, anunciado em novembro
de 2018. De acordo com o consórcio, a intenção é “conectar e permitir a
colaboração” entre transportadoras, terminais e expedidoras em toda a cadeia
logística. A plataforma é liderada pela empresa de software CargoSmart e atraiu
nomes sonantes desde o início, com nove transportadoras marítimas e operadoras
de terminais a assinarem um Memorando de Entendimento: a Cosco Shipping Lines,
a CMA CGM, Evergreen Marine, OOCL, Yang Ming, DP World, Hutchison Ports, PSA
International Pte e Porto Internacional de Xangai.
A solução de blockchain da Oracle
também é aberta. Oferece uma plataforma na nuvem “para criar e executar
contratos inteligentes e manter um ledger [registo] distribuído inviolável”,
explica João Borrego, consultor sénior de vendas da Oracle Portugal. A vantagem
é possibilitar “transações em tempo real e partilhar com segurança dados à
prova de falsificação numa rede corporativa confiável.”
De
acordo com o responsável, a tecnológica está a trabalhar com clientes em
Portugal nesta área, “executando pilotos essencialmente no sector público e na
banca.” Ainda não há nada que possa ser anunciado na área especifica de
logística e transportes, mas João Borrego avança que a Oracle está a ter
conversas e tem “aceite desafios” relacionando a tecnologia de blockchain com
Internet das Coisas. Tal permitiu encontrar “casos de uso muito interessantes”
que “estão a ser equacionados seriamente pelos clientes”, que os encaram como
meios de diferenciação perante a concorrência. “Finalmente estamos a ver as
ideias a passarem do papel para a prática e a serem colocadas em
funcionamento”, salienta o responsável.
A indústria de transportes e
logística é um dos segmentos onde a Oracle antecipa maior crescimento. É aqui,
em paralelo com administração pública e banca/seguros, que a empresa está a
encontrar “os casos de uso mais maduros e com benefícios facilmente
mensuráveis.” Pelo lado da TradeLens, Marvin Erdly afirma que estão a seguir o
surgimento de outras plataformas e que a concorrência é bem-vinda. “Achamos que
é um desenvolvimento positivo”, disse. “Valida a visão que tivemos há dois anos
quando começamos isto, que outros estão a olhar para a necessidade de endereçar
o problema.”
O responsável salienta a importância
de usar standards abertos para que o mercado cresça de forma global. “A ideia é
que todas estas plataformas possam ser interoperáveis”, explicou. “Dessa forma,
as entidades que investem para integrar na nossa plataforma ou noutras podem
alavancar os investimentos para conectar a múltiplas plataformas.” É tudo, tal
como na própria cadeia logística, uma questão de escala.
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