Ao longo da última semana, o medo de que faltassem alimentos,
combustíveis e transporte público tirou o sossego de parte da população,
alterando a rotina das cidades e afetando diversos setores. Com
milhares de caminhões carregados parados ao longo das rodovias, ficou
evidente a dependência do país em relação ao transporte rodoviário. Especialistas
afirmam revelar outros graves problemas estruturais, como a falta de um
plano de contingência que evite a asfixia da atividade produtiva e
impeça o apagão logístico ante uma greve de caminhoneiros.
Para a superintendente da Associação Nacional dos Transportes de
Passageiros Sobre Trilhos (ANPTrilhos), a economista Roberta Marchesi, e
a diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da
Fundação Getulio Vargas (FGV-Ceri), Joisa Dutra, alguns dos atuais
gargalos da infraestrutura de transporte nacional são reflexos da opção
feita pelo Estado brasileiro na década de 1950, quando os governantes
decidiram priorizar os investimentos na indústria automobilística.
Consequentemente, recursos públicos dos três níveis de governo foram
quase que integralmente canalizados para a ampliação da malha
rodoviária, em detrimento dos transportes por ferrovia e hidrovia.
Com uma malha ferroviária para cargas e passageiros que não chega a
30 mil quilômetros de extensão, o Brasil está atrás, até mesmo, da
Argentina. Com um território de 2,7 milhões de quilômetros quadrados (o
equivalente à soma dos territórios do Amazonas e do Pará), o país
vizinho conta com 36.917 quilômetros de trilhos. Já os Estados Unidos
dispõem de uma malha de cerca de 294 mil quilômetros. Mesmo a Índia, com
um território equivalente a quase metade do brasileiro, conta com mais
de 68 mil quilômetros de trilhos.
“A crise que estamos assistindo é, em grande parte, fruto do caos
logístico decorrente da concentração do transporte de cargas e de
passageiros em um único modal”, disse à Agência Brasil a
economista Roberta Marchesi, superintendente da Associação Nacional dos
Transportadores de Passageiros Sobre Trilhos (ANPTrilhos)
Pós-graduada nas áreas de planejamento e logística, Roberta aponta os
riscos de que boa parte da atividade econômica brasileira dependa de um
único meio de transporte. “Se tivéssemos uma malha ferroviária e estes
alimentos e combustíveis pudessem ser levados até os centros urbanos por
trens, minimizaríamos o impacto desta crise. Nosso desenvolvimento não
pode estar estruturado sobre um único modal.”
Para Joisa, ao mesmo tempo em que torna imprescindível a elaboração
de um plano anticrise, a concentração do transporte de passageiros e de
cargas em um único modal dificulta a execução deste mesmo plano de
contingência. A diretora do Ceri também defende a ampliação da malha
ferroviária e a integração entre os diferentes meios de transporte.
“Sob determinadas condições, o [investimento no] modo ferroviário
seria desejável. Não só isso. Seria necessária uma maior integração [da
infraestrutura de transportes], o que envolve uma combinação de modais”,
defendeu Joisa.
De acordo com Roberta Marchesi, os projetos de ferrovia e hidrovia
são de longo prazo e exigem continuidade entre governo sucessivos.
“Seriam necessários projetos de Estado. Um plano de desenvolvimento
estruturante que transcendesse os mandatos políticos”, comentou. Segundo
ela, apenas 6% dos deslocamentos diários de passageiros são feitos por
trens, metrôs, veículos leves sobre trilho (VLT) ou outros modais sobre
trilhos.
“Os governantes preferem investir em empreendimentos que possam ser
inaugurados dentro dos seus quatro anos de governo. Neste espaço de
tempo, não é possível começar do zero e inaugurar um sistema completo, a
menos que ele já estivesse estruturado e com projeto pronto”,
acrescentou a superintendente da ANPTrilhos, criticando “soluções
imediatistas que não respondem às reais demandas das cidades e de seus
cidadãos”.
Roberta Marchesi compara com a infraestrutura dos países mais ricos,
quando se trata do transporte urbano. De acordo com ela, o metrô de São
Paulo, o maior do país, percorre cerca de 74 quilômetros de trilhos,
enquanto o de Nova York (EUA) chega a integrar quase 400 quilômetros.
Mesmo em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, a participação do
transporte metroferroviário não ultrapassa 20% do total de viagens de
passageiros. “Em países desenvolvidos que mantiveram investimentos na
indústria ferroviária, esses deslocamentos chegam a 45% do total de
viagens. Ainda temos muito o que avançar”, disse a superintendente.
Ao tomar posse hoje, o novo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Ronaldo Fonseca, disse que o governo planeja três leilões de ferrovias
ainda este ano. Fonseca afirmou que o Brasil precisa acabar com a
dependência do transporte rodoviário. “O segundo semestre será o momento
das ferrovias no Brasil”, afirmou.
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