O Brasil ensaia entrar no túnel do tempo e voltar a sofrer com as
chamadas barreiras não tarifárias, de ordem ambiental e social, difíceis
de serem contestadas. No passado, elas foram usadas por concorrentes
internacionais como argumento para minar as exportações brasileiras, diz
o embaixador Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio
Ambiente.
Diante da portaria que afrouxa a definição de trabalho escravo e
altera critérios de autuação e de divulgação desse tipo de crime,
acordos de comércio podem ser colocados à prova pelo que o embaixador
chama de "retrocessos" chancelados pelo governo de Michel Temer.
O recuo é generalizado, diz ele. Ocorre nas condições de trabalho no
campo, nas questões ambientais e também em relação às demarcações de
terras indígenas e quilombolas, causando assombro e reações dentro e
fora do país.
Até terça (17), apenas no Congresso Nacional, haviam sido
protocolados oito projetos pedindo a revogação da portaria que altera a
definição do trabalho escravo. "É um retrocesso completo, o governo dá um tiro no pé. Um não, reiterados. Ele não se cansa", afirma.
Ricupero diz que o país estaria voltando ao início dos anos 1990,
quando setores nos quais o Brasil gozava de vantagens comparativas
importantes enfrentavam questionamentos no mercado externo envolvendo
trabalho infantil ou realizado em circunstâncias degradantes.
As justificativas dos concorrentes era de que o país conseguia
oferecer condições competitivas no comércio externo passando por cima de
requisitos considerados mínimos no âmbito dos direitos humanos e
ambientais.
Os recentes recuos, portanto, dariam gás à estratégia. Foi na década de 1990 que o país começou a olhar para o problema. Uma
lei de 2003, no entanto, atualizou a tipificação do crime, introduziu
as expressões "condições degradantes" e "jornada exaustiva" e
estabeleceu penas de reclusão, de dois a oito anos.
A mudança abrupta de rota, fala Ricupero, é patrocinada pelos setores
mais retrógrados do agronegócio, que, após idas e vindas, avançam com
suas pautas de olho em vantagens no curto prazo.
Para Ricupero, é possível que pressões façam o governo voltar atrás,
como já ocorreu com o Renca, a Reserva Nacional de Cobre que Temer
propôs abrir à exploração por decreto, sem discussões no Congresso.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também se posicionou contra
a mudança. Disse que a considera inaceitável e que espera que o governo
corrija o retrocesso. Nesta quarta-feira (18), a procuradora-geral da República, Raquel
Dodge, recebeu o ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, formalizando o
pedido de revogação da portaria. Dodge classificou a medida como "um retrocesso na garantia constitucional de proteção à dignidade humana".
O tema é sensível e alguns setores o tratam com discrição. Para a
Unica (União da Indústria da Cana-de-Açúcar) é cedo para avaliar os
efeitos. A entidade ressalta que o etanol destinado à União Europeia tem que,
necessariamente, ser certificado por um selo internacional, que garanta
padrão de sustentabilidade socioambiental.
A Associação Brasileira de Varejo Têxtil, que tem programa de
certificação contra o trabalho escravo, diz apenas que o mantém para
fornecedores do varejo de moda. Entre os analistas de mercado, a percepção é que os efeitos negativos
podem ser minimizados pela força do Brasil na exportação de produtos
como soja, açúcar, café, suco de laranja e carne.
Para José Carlos Hausknecht, sócio-diretor da consultoria MB Agro, os
riscos de retaliação viriam da União Europeia, grande compradora de
café e suco de laranja. Tomar esse tipo de medida não seria trivial. "Até porque a incidência
[do trabalho escravo] é mínima e concentrada em lugares mais remotos".
Outro ponto, diz Hausknecht, é que a China importa 70% da soja
brasileira e divide com o Oriente Médio as aquisições de açúcar. "E acho
que a China não vai deixar de comprar do Brasil".
O advogado Clovis Queiroz vê como positiva que a definição de
trabalho análogo à escravidão, antes técnica, posa ficar com o
Judiciário. "Às vezes, a empresa nem recebeu a infração e já tem o nome atrelado à prática sem chance de se defender",diz.
É necessário ter determinação expressa do ministro do Trabalho, cargo
ocupado hoje por Ronaldo Nogueira (PTB), para divulgar o nome de uma
empresa que manteve trabalhadores em situação análoga à escravidão.
Antes, a divulgação cabia à área técnica do ministério
A portaria prevê que a lista será divulgada duas vezes por ano, nos
últimos dias úteis de junho e novembro, no site do Ministério do
Trabalho. Antes, ela podia ser divulgada em qualquer momento, desde que
não ultrapassasse um período de seis meses sem atualização
O auditor fiscal agora precisará ser acompanhado nas operações por
uma autoridade policial, que registrará um boletim de ocorrência. Fotos
da fiscalização e identificação dos envolvidos passam a ser obrigatórias
no relatório da ação
Para que o trabalho seja considerado análogo à escravidão, é preciso
que haja privação da liberdade de ir e vir, segundo a portaria. Antes,
usava-se o entendimento do artigo 149 do Código Penal, que considera
crime a submissão do indivíduo ao trabalho forçado, a uma jornada
exaustiva e a condições degradantes, podendo haver ou não restrição da
locomoção
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