O porto
de Santos, no litoral de São Paulo, considerado o maior da América Latina,
segue operando durante a pandemia do novo coronavírus. Os trabalhadores portuários
temem o contágio, mas prevalecem outros sentimentos: missão a cumprir na
prestação de um serviço essencial, espírito de trabalho coletivo por algo maior
e até um certo patriotismo —ajudar o Brasil a resistir no que lhes parece um
estado de guerra contra uma doença.
“Os portuários têm muito a essência
do passado: a estiva fazia parte da Marinha, muitos de nós somos filhos de
estivadores aposentados”, diz o estivador Sandro Olímpio, 47, há 25 anos no
porto. “O trabalhador portuário sabe de sua importância para o país e toma isso
para si, se sente útil, como se fosse uma força militar. É uma coisa que vem lá
de trás,” explica.
No porto de Santos, trabalham cerca de
30 mil profissionais, segundo dados da SPA (sigla para Santos Port Authority,
autoridade que responde pela infraestrutura do porto, a antiga Codesp). No mês
de março deste ano, lá foram movimentadas quase 13 milhões de toneladas de
cargas de uma enorme diversidade de produtos. Medicamentos, trigo, soja, álcool
e veículos estão na extensa lista.
Para muitos trabalhadores, o principal
desafio é equilibrar o senso de dever coletivo com a responsabilidade de
preservar a segurança da família. Deyvis Araújo, 35, é operador de STS, sigla
de ship-to-shore, usada para nomear guindastes que movimentam contêineres. Com
dois bebês em casa, ele conta que ao chegar em casa tira os pertences e as
roupas de trabalho na garagem e segue para o chuveiro.
“Só faço contato com as crianças
depois de ter tomado banho e passado muito álcool em gel”, afirma. “Compro
também muitos produtos para fazer limpeza e evito ao máximo ir para a rua — é
só de casa para o trabalho, do trabalho para casa”, afirma Araújo.
Segundo Deyvis, a sensação de todos no
porto é que o trabalho não pode parar. “Não estamos pensando no micro, e sim no
macro, no Brasil. A responsabilidade é de todos, é um momento de dificuldade, e
temos a sensação de que estamos em guerra. Esse é o sentimento que passa em nossos
corações”, afirma.O estivador Rogério de Farias, 52, vive o dilema familiar de
outra maneira.
Ele conta que, ao longo do dia,
enquanto trabalha, pensa sempre na esposa, nos quatro filhos e nos dois netos,
que moram todos com ele. “Temos que levar o sustento para casa e também
trabalhar em prol da população e do crescimento do país, mas, ao mesmo tempo,
ficamos receosos de pegar uma infecção e levar para dentro de casa.”
Como ele é casado com uma uma enfermeira, diz ter com quem compartilhar o temor e também a sensação de estar no que chama de “linha de frente da defesa do país”. “Na primeira linha de frente no combate à pandemia está o pessoal da saúde, na segunda, os portuários, os profissionais que não deixam a população ficar desfalcada —temos essa consciência.”
Como ele é casado com uma uma enfermeira, diz ter com quem compartilhar o temor e também a sensação de estar no que chama de “linha de frente da defesa do país”. “Na primeira linha de frente no combate à pandemia está o pessoal da saúde, na segunda, os portuários, os profissionais que não deixam a população ficar desfalcada —temos essa consciência.”
Há duas semanas, a categoria ameaçou
parar as atividades. O presidente da Sindiestiva (Sindicato dos Estivadores de
Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão), Rodnei Oliveira da Silva, disse que a
intenção da mobilização, no entanto, nunca foi parar o porto de verdade. Essa
foi a forma que a categoria encontrou para reivindicar a adoção de protocolos
de higiene e saúde que previnem contra o coronavírus. “Não queremos paralisar,
mas queremos uma garantia de fiscalização e inspeção. Se a gente se contaminar,
vai levar para família, estamos muito expostos”, esclareceu Silva.
De lá para cá, o Ogmo (Órgão de Gestão
de Mão de Obra do Trabalho Portuário do Porto Organizado de Santos) informou
que vem adotando as recomendações das autoridades para evitar a contaminação
dos trabalhadores. Foi criado um grupo para acompanhar as demandas da
categoria.
Na segunda (30), a SPA comprou 5.000
litros de álcool em gel. E vem tentando manter o abastecimento de máscaras, um
produto que foi escasseando e subindo de valor. “Fizemos uma compra em
fevereiro, e pagamos R$ 0,95 por máscara N95 [de alta proteção]. Hoje, ela
custa no mínimo R$ 12, podendo chegar a R$ 20”, revelou Casemiro Tércio,
presidente da SPA.
Apesar de ser um porto público, Santos
adotou o sistema de arrendamento e conta com terminais de uso privado. Há 14
terminais privados, e cada qual é um microcosmo. Como as operações exigem
diferentes atribuições, há também um número variado de empresas. Operadores,
por exemplo, são especializados na movimentação e armazenagem de mercadorias,
enquanto os armadores atuam no transporte marítimo.
A operadora BTP (Brasil Terminal
Portuário) tem 1.300 funcionários. Cerca de 80% dos 300 da área administrativa
estão em trabalho remoto. O presidente da BTP, Ricardo Arten, conta ter ficado
surpreso com a adaptação do pessoal no trabalho a distância —só o grupo de
WhatsApp do terminal tem 500 pessoas.
“Todas as reuniões presenciais foram
suspensas, e estamos aprendendo a trabalhar a distância”, diz Arten. O Santos
Brasil, outro operador, alterou até refeitório. “É preciso evitar aglomerações,
então colocamos sinalizações de onde sentar, determinando o distanciamento
correto”, observa Evelyn Santo de Lima, 34, coordenadora de planejamento de
operações.
“Toda vez que o funcionário acaba de
comer, outro faz na hora a higienização do local.” Segundo Evelyn, desde que a
pandemia se alastrou, ela parou de visitar os pais, idosos e integrantes do
grupo de risco. “Entendo que vivemos um momento de solidariedade. Por aqui
passam contêineres de medicamentos, equipamentos e produtos hospitalares, e
isso realmente é importante, é uma das forças que fazem a gente estar aqui.
Faremos o que pudermos para manter o porto girando e as pessoas continuarem
recebendo os produtos em casa”, afirma.
A evolução da Covid-19 no porto é
acompanhada de perto também pela Prefeitura de Santos. A chegada de um navio
turístico de luxo na semana passada, com relatos de contaminados, movimentou a
cidade, que teme um colapso no sistema de saúde caso os tripulantes e
passageiros desembarcassem na cidade. “É um cenário difícil, não conseguimos
comportar tanta gente”, conta o secretário da Saúde, Fabio Ferraz. A cidade tem
hoje 208 leitos de UTI e aguarda a chegada de aproximadamente 100 novos.
Até sexta (3), o município havia
registrado quatro mortes e 96 casos diagnosticados com Covid-19. Estavam sob
monitoramento 16 pessoas, à espera do resultado do exame. Por terra, o fluxo de
caminhões que trazem e levam mercadoria segue normal, registrando até aumento.
Apenas na última quinzena, 137.643 passaram pelo porto, 14,8% a mais do que no
mesmo período do ano passado. Já não se pode dizer que o mesmo ocorre nos cais
de atracação. Os terminais projetam queda de até 50% na chegada de navios
asiáticos.
O Brasil sente com atraso os reflexos
do efeito da Covid-19 do outro lado do mundo: uma embarcação leva 40 dias para
chegar ao país zarpando de um porto na China. As atividades portuárias ficaram
praticamente paradas entre o Ano-Novo chinês e meados de fevereiro. Por um
período, o movimento de contêineres quase parou por falta de trabalhadores na
China.
Segundo o Santos Brasil, do início de
março até 15 de abril, foram canceladas 7 de 16 escalas da Ásia, totalizando
3.500 contêineres cheios que não chegaram. As cargas provenientes das demais
rotas estão dentro da normalidade. A BTP, por sua vez, diz que, dos 93 mil
contêineres esperados em março vindos da Ásia, 10 mil não chegaram.
Para Tércio, os reflexos da Covid-19
serão sentidos com mais força no segundo trimestre. “Esperamos uma diminuição
expressiva de importação, reflexo do isolamento em vários países, que mantém as
pessoas em casa, cessa investimentos e consumo." Quando isso ocorrer,
muitos portuários sem vínculo empregatício poderão não ter trabalho. Vão
depender de auxílio emergencial do governo.
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